Fenil, Lasix e as corridas de
cavalo 07/12/2008 - 12h26min
Sergio Barcellos
Embora o uso de certos tipos de
medicação seja proibido há anos pelo Código Nacional de Corridas, sempre que algum
profissional de sucesso é suspenso por isso, a polêmica em torno do assunto tende a aumentar.
Como não parece existir entre nós convicção formada sobre este dispositivo do código, não
custa nada saber o que o turfe e a indústria internacional do cavalo de corridas pensam a
respeito.
No hemisfério norte, a primeira condição para a existência de um turfe
desenvolvido e organizado, é a absoluta proteção da imagem pública do esporte. Por outras
palavras, seja na Europa, seja na Ásia, seja onde for, não há possibilidade de aumento das
apostas, muito menos de patrocínio das provas, se esta imagem não for defendida, ao transe,
pelas entidades promotoras de corridas de cavalo. Sem nenhum juízo de valor, se isso é bom,
ou ruim. É assim que é.
Recentemente, o maior treinador de cavalos da Inglaterra,
ganhador somente este ano de 23 provas de Grupo I, considerado um novo gênio de sua
profissão, foi suspenso por uma semana e recebeu uma multa de 5,000 libras, simplesmente
porque ordenou ao jóquei do “faixa” da coudelaria que propositadamente diminuísse o ritmo e
abrisse na reta para dar passagem ao titular da parelha. A British Racing Authority (BRA),
diga–se de passagem, com o total apoio do prestigioso jornal The Times, considerou esta
tática como uma ofensa à lisura das corridas. Se era para abrir e facilitar a passagem de um,
então que abrisse para facilitar a passagem de todos.
Há tempos atrás, o Aga Khan,
talvez hoje o maior criador do mundo, mudou intempestivamente todos seus animais, da
Inglaterra para a França, porque não gostou da desclassificação de sua ganhadora do Oaks. Os
ingleses mantiveram–se firmes. Tempos depois, Son Altesse reconsiderou sua decisão e voltou a
inscrever na Ilha.
A razão de tanto rigor? A defesa, ao transe, da lisura das
corridas.
Para eles, sem isso não há nenhum futuro para o turfe – da mesma forma que
não há futuro para nenhum jogo, de qualquer tipo, onde as regras da disputa não são
obedecidas.
O que dizer, então, da existência de medicação proibida na semana da
corrida? De saída, as normas européias a respeito são mais rigorosas que as nossas. Lá, não é
possível, como aqui, correr, por exemplo, medicado com Lasix. Na verdade, não é permitido
correr medicado com absolutamente nada que possa alterar a performance do animal. Mesmo nos
EUA, onde o diurético é permitido, as normas locais, de modo geral, são muito, muitíssimo
mais, rigorosas e restritivas que as nossas.
Por que? Porque hoje não se discute se o
Lasix ajuda a ganhar, e sim se ele ajuda a perder. É, perder! Animal propositadamente
medicado de forma errada com Lasix (isto é, fora do tempo padrão de 4 horas e em maior
quantidade que o normal) perde, ao invés de ganhar.
Aliás, quando o Lasix foi adotado
entre nós – após uma verdadeira batalha de meses entre seus adeptos e desafetos –
todos, rigorosamente todos, os animais que corriam medicados com o diurético tinham seus
fluidos corporais retirados e mandados examinar pelo departamento anti–doping do JCB, para
saber se haviam recebido a dosagem certa, no tempo certo, antes da corrida, como manda o
regulamento a respeito. Hoje, infelizmente, não é mais assim.
E o que dizer do Fenil,
o super–analgésico, que mascara qualquer dor, não importa sua origem? Como isso é tratado nos
turfes desenvolvidos? A resposta está no artigo 6° dos regulamentos da Federação
Internacional das Autoridades Hípicas, adotado por 68 países: seu uso é terminantemente
proibido!
Motivos? Mais simples ainda: qualquer ser vivo do qual se retira
artificialmente o primeiro sinal de perigo representado pela dor, não pode, e não deve, ser
submetido a esforço que agrave o problema. Questão de compaixão, quando menos; de
consciência, quando mais.
Mas o problema não se esgota nos seus aspectos morais. Ele é
bem mais concreto que isso. Basta imaginar o que poderia ocorrer com um cavalo medicado com
Fenil para mascarar uma grave lesão, seja óssea, seja de ligamentos, a 60 quilômetros por
hora, carregando no dorso alguém de, pelo menos, 50 quilos. De duas, uma: ou o animal agrava
definitivamente sua lesão após a corrida, ou corre o risco de quebrar no meio do percurso,
com as dolorosas conseqüências daí decorrentes.
Não custa lembrar que, dependendo da
gravidade do acidente, tais conseqüências podem facilmente evoluir para a esfera cível,
atingindo indistintamente os responsáveis, eis que a essência da culpa é a falta do dever de
cuidado.
Mas o Fenil é permitido no turfe americano, dirão alguns. Verdade. Como
também é verdade que os EUA são o único turfe do mundo que sistematicamente se recusa a
aderir ao artigo 6° dos regulamentos da Federação Internacional que o proíbe, bem como ao
Lasix.
Da mesma forma, aliás, como os EUA também não assinaram o Tratado de Kioto, que
pretende lidar com a poluição mundial, e assim por diante. Ou seja, nem sempre o que é bom
para uns, é necessariamente bom para a humanidade.
Na verdade, toda essa discussão
sobre medicação na semana da corrida é bizantina: não pode. Ponto. É claro que há graus
diferentes de intencionalidade que devem ser examinados. É claro que existem dirimentes e
agravantes na análise do caso a caso. É claro que há remédios e remédios.
Mas
exatamente para isso, é que existem os recursos e, acima deles, a presunção constitucional de
inocência.
O que não é possível, entretanto, é fazer tabula rasa do Código Nacional de
Corridas; desmoralizar o departamento anti–doping do Jockey Clube Brasileiro; vulnerar a
imagem do turfe brasileiro perante o público, seja ele apostador ou não; e, depois, imaginar
que tudo será com antes. Não será.
Ademais de ser (muito) perigoso, Fenil é para
ajudar a curar cavalo doente que sente dor. Não para fazer cavalo correr e ganhar, apesar da
dor que sente.
por Sergio
Barcellos |