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Colunista:

Turfe – "Treinamento vs. Hemorragia – OSAF, Furosemida e Fenil", por Sergio Barcellos
21/03/2011 - 11h13min

O que um juvenil mais precisa é de caminhar muito, trotar muito, galopar, e galopar, e galopar, até aprender ritmo e respiração.” (François Boutin, francês, treinador, 104 Grupos I em seu cartel, iniciador de Nureyev, Miesque, Northern Trick, Miswaki, Machiavellian, Kingmambo, Hector Protector, entre outros.   

Dos dois dias (10 e 11 de março) de conferências e debates  havidos na última reunião da OSAF – Organização Sul Americana de Fomento, em Buenos Aires, com a participação de especialistas da Federação Internacional das Autoridades Hípicas – FIAH (Drs. Roland Devolz, francês, e Edward Houghton, inglês), mais os professores Dra. Fabiana Landoni, PhD em Medicina Veterinária, pela Faculdade de Medicina, da Universidade de Londres; Dr. Osvaldo Centurión, PhD em Química, Controle Anti–Doping da Secretaria Del Deporte, Argentina; Dr. Ignacio Pavlovsky, Vice–Presidente do Conselho Técnico Executivo da OSAF; Dr. Juan Antonio Rodríguez Portas, vice–presidente da Associação Nacional de Médicos Veterinários, Argentina, além de vários outros especialistas em fisiologia e medicação eqüinas, ficam algumas conclusões, a saber:

1) Que os países membros da OSAF – principalmente Argentina e Chile – se preparam para banir, de vez, a furosemida (usualmente conhecida com Lasix) em provas da programação clássica do turfe do continente, a partir de 2012 (geração nascida em 2010).

2) Que o Brasil, graças à recomendação formal da ABCPCC, se antecipou a esse movimento e proibiu a administração do medicamento em qualquer prova de sua programação clássica, já a partir de 1° de janeiro do corrente exercício (leia–se, Grupos I, II, III, e Listed Races).

3) Finalmente, que a ocorrência de eventuais sangramentos em cavalos de corrida, principalmente aqueles dos níveis II a V, guarda uma correlação direta com os métodos de treinamento usados em alguns turfes do mundo.

Parece interessante desenvolver este último tema. Como se segue.

Hemorragias vs. treinamento

É sabido que os eqüinos, desde épocas imemoriais, têm uma única saída para opor–se aos seus predadores naturais: a fuga.

Dado que nenhum grande predador é capaz de perseguir sua presa em alta velocidade sobre distâncias maiores que o limite dos 500/600 metros (a temperatura corporal sobe – energia gera calor –, e eles são obrigados a arrefecer seu ritmo, antes que todo o sistema cardíaco entre em colapso), a natureza não exige dos eqüinos que eles percorram, a pleno galope, distância maiores que essas para sobreviver.

Assim, foi somente graças à intervenção do homem – através de mais de 300 anos de seleção e treinamento –, que a raça puro sangue inglês de corrida consegue realizar a façanha de atingir e manter velocidades ao redor dos 18 metros por segundo sobre distâncias que variam dos 1.000 aos 3.000 metros, ou mais que isso, no caso dos grandes galopadores profissionais – de que é exemplo o fantástico Yeats (Sadlers’ Wells e Lyndonville, por Top Ville), quatro vezes ganhador da Ascot Gold Cup, em 4000 metros (2006, 2007, 2008, 2009).

Sua capacidade pulmonar e sua capacidade cardíaca são maiores que a de qualquer cavalo que já treinei. Sob este aspecto, ele é um indivíduo que toca o inacreditável”, são as palavras de seu treinador, o conhecido irlandês Aidan O’Brien (nada a ver com Vincent O’Brien, chamado de “O Mago de Ballydoyle”).

A assustadora beleza do cavalo de corrida reside exatamente nisso: a de ter se transformado na melhor máquina aeróbica do mundo animal – a única capaz de manter altas velocidades sobre a distância –, transcendendo todas as características, e contrariando todos os limites, de sua própria natureza. Uma obra–prima.

Mas isso impõe uma condição sine qua a quem pretende treiná–los: a de garantir, antes de tudo, a integridade de seu aparelho respiratório (principalmente na fase inicial de sua formação), esse notável fole que possibilita a transmissão de oxigênio para o sangue e lida com o derrame de ácido lático. Sem pulmões íntegros e preservados, não há possibilidade de cavalo de corrida.

A esse respeito, deixemos falar quem sabe. No caso, o Dr. Ignacio “Nacho” Pavlovsky (pai), que trabalhou na França, durante os anos de 1970, com o legendário treinador argentino, Angel Pena, tendo dado à coudelaria Wildenstein algo raríssimo, qual seja a liderança das estatísticas de proprietários na França e na Inglaterra, em um mesmo ano (1976). Citamos:

Insisto em que é de vital importância para evitar o sangramento, o tipo de treinamento a que o cavalo é submetido. Vivi pessoalmente esta experiência com Angel Pena, na França, quando, em 1976, fizemos Daniel Wildenstein ganhar a estatística clássica da Inglaterra e da França, fato que não ocorria há mais de 150 anos, vencendo as principais provas de Grupo I nos dois lados do Canal, incluindo o Prix de l’Arc du Triomphe (com Allez France), e o King Geoge VI & Queen Elizabeth Stakes (com Pawneese). Além de termos ganho com Flying Water, entre outros, o One Thousand Guineas, o Champion Stakes, e a milha do Jacques Le Marois, em Deauville, batendo ao campeoníssimo Blushing Groom. Além de Crow ter vencido o Saint Leger, de Doncaster”, etc. etc.

Prossegue o Dr. Pavlovsky:

Nunca, nos meus tempos de França, vi um cavalo sangrar. Atribuo este fato à gigantesca diferença que existe na forma de treinar daquele país, na qual os animais estão uma hora e meia por dia em movimento, sem parar. Caminham, trotam, galopam, trotam, e voltam a caminhar. Aqui (leia–se, Argentina), como na América, o que se constata é que os animais permanecem em movimento entre sete e dez minutos, e ficam, em média, parados meia hora, esperando sua vez de serem montados pelos jóqueis e redeadores.

E finaliza:

Nesta meia hora, pelo menos isso, seus peões (cavalariços) poderiam aproveitar para fazê–los caminhar e trotar, ao invés de serem mantidos parados, sem fazer absolutamente nada. Vi, certa vez, em Belmont Park (NY, EUA), um animal caminhar 100 metros de sua cocheira à pista, trotar 100 metros, dar uma volta a galopinho na raia, trabalhar 600 metros, e voltar para a cocheira. Teríamos que copiar o turfe alemão, que não permite que qualquer cavalo que tenha sido medicado durante sua campanha entre para a reprodução.” (vide depoimento prestado na última reunião anual da FIAH, Paris, 2010, in Relatório de Atividades da OSAF, pág. 36).

Mais claro, impossível.

A conclusão parece ser uma só: juvenis mal treinados – ou treinados de forma açodada, o que dá no mesmo –, são mais suscetíveis a sangramentos, não importa a partir de que linhagens sejam construídos.

Cavalos, aí incluídos os de corrida, são seres visceralmente nômades e dos espaços abertos. “Se alguém puser um GPS num cavalo, e deixá–lo inteiramente livre, ao final de algum tempo vai perceber que ele caminhou 22 horas e pastou duas, em cada dia completo.” (Dr. Roland Delvoz, assessor da FIAH)

Assim, submetê–los a exercícios diários que não duram mais que alguns minutos; enclausurá–los o resto do tempo num box infecto de 9 metros quadrados (invariavelmente respirando pó de serragem); submetê–los a trabalhos e aprontos suicidas antes que amadureçam e completem seu ciclo de crescimento; e, pior, fazê–los correr repetidas vezes (principalmente em distâncias curtas, que demandam súbitas explosões de velocidades e a manutenção de um ritmo de inferno), significa um convite quase irrecusável ao desastre do sangramento.

E quando isso ocorre, a culpa, na maioria dos casos, não é deles; é nossa. Como também, a tão propalada “fragilidade pulmonar da raça” – que está na base da justificação do uso da furosemida –, não lhes pertence; pertence à forma inadequada, e o mais das vezes brutal, com que pretendemos iniciá–los, e imaginamos poder “treiná–los.”

Grandes cavalos, iniciados pelos mestres da profissão, aqui e lá fora, raramente sangram. Como tal, não precisam da furosemida para correr o que sabem.

E se os fazemos usá–la (na última Breeders’ Cup, em Churchill Downs, Kentucky, todos – literalmente todos! – os animais inscritos no sábado e no domingo, com exceção de apenas dois, foram medicados com Lasix, precisando ou não dele...), os verdadeiros motivos e argumentos para isso devem ser buscados em outras áreas, certamente mais nebulosas, do que a “proteção” da suposta (in)capacidade pulmonar do animal de competição.

É esta, hoje, a visão do moderno turfe internacional, que, aos poucos, vai sendo cristalizada em regiões do mundo onde se proíbe a furosemida para correr (como de resto, qualquer outro tipo de medicação), ou seja, toda a Ásia, toda a Oceania, toda a Europa, todo o Oriente Médio, a África do Sul, etc. etc.

Não causa surpresa, pois, que esta visão tenha chegado à América do Sul, onde, mais do que nunca, é vital a preservação do conceito de que o continente é igualmente capaz de criar animais sãos e livres de medicação, ainda que seja para defender e preservar seus mercados de exportação. Muito mais que a demonstração de uma virtude, a proibição da furosemida se liga à necessidade de garantir a própria sobrevivência econômica da atividade entre nós.

Este é o resumo das conclusões dos dois dias de palestras e debates sobre o tema, havidos no âmbito da OSAF, em Buenos Aires, Argentina.

Estrutura óssea e treinamento

Aqui, a questão é outra, e se refere à dor. E dor, em cavalo de corrida, nos remete à permissão do uso da fenilbutazona, ainda vigente em certos turfes do mundo.

Do ponto de vista físico, é sabido que eliminar os sinais da dor em qualquer atleta, agrava a patologia dos sintomas, ao invés de resolvê–los. Como tal, permitir a administração de fenilbutazona para correr tem conseqüências, não só morais (que afetam diretamente a imagem pública do esporte), como nas áreas do direito civil (e mesmo penal), caso ocorra algum acidente com os condutores de animais medicados dessa forma, antes da  disputa das pistas.

No Brasil, felizmente, a fenilbutazona sempre foi proibida, não importa de que corrida se trate. Na Argentina, ela caminha para sê–lo, a partir de 2013, para os animais de 2 anos, e para os de mais idade nos eventuais confrontos com esses.

Sobre o tema, valem algumas digressões. Como se segue.

A 60 quilômetros por hora, e carregando o peso do jóquei sobre seu dorso, cada membro locomotor de um cavalo de corrida despeja em torno de 5 toneladas de impacto na pista. Em alguns casos, mais que isso. E, por uma lei conhecida da física, recebe de volta a mesma tonelagem (“A toda ação, corresponde uma reação igual e em sentido contrário”, etc. etc.).

Este “vetor de retorno” biodinâmico tem que ter sua pancada absorvida e dissipada antes da próxima passada, através do conjunto formado por casco, quartela, boleto, osso da canela, joelho, antebraço, chegando até o grande osso da paleta). Não fosse assim, o animal sucumbiria após determinado número de passadas, pois a violência do retorno acabaria por danificar seu próprio aparelho cerebral.

Como cada passada de um cavalo a pleno galope mede em torno de 4 metros, ao final de um páreo na milha, por exemplo, ele terá impactado 400 (quatrocentas!) vezes o solo (1.609 metros divididos por 4). Portanto, ao cruzar o disco, nosso animal terá tido que absorver e dissipar nada menos que 2.000 toneladas em cada um de seus membros locomotores (400 passadas x 5 toneladas). Principalmente, no que se refere aos membros dianteiros.

O resultado disso, é que ao final de qualquer corrida um puro sangue deixa a pista com seus ossos tomados por inúmeras micro–fissuras (só perceptíveis a microscópio), que levam tempo para serem reduzidas. Por óbvio, quanto mais dura estiver a raia, ou mais longo for o percurso, mais tempo será necessário para que o aparelho ósseo  recupere seus níveis normais de mineralização.

Portanto, há um limite para o uso da soberba constituição do cavalo de corrida, limite além do qual, o “chassis” (principalmente, boletos, ossos da canela e a complexa estrutura dos joelhos) não resiste ao esforço.

Tudo isso, sem mencionar que o “motor” do cavalo de corrida (coração, pulmões, músculos e ligamentos) sempre fica pronto antes do chassis. Faz parte de sua natureza. Assim, quando se acelera o motor antes do tempo, corre–se o risco de quebrar o chassis.

A boa preparação do chassis de um puro sangue demanda meses do que se conhece como trabalho longo a ritmo suave. Os ingleses chamam isso de “construir quilometragem” sobre o animal. Em alguns indivíduos com menor densidade óssea (“pobres de osso”, no jargão do turfe), esses exercícios de raia podem exigir um tempo ainda maior que o normal.

Aqui, novamente, estamos falando de métodos de treinamento, sendo certo que a maioria dos chamados acidentes de raia, principalmente com juvenis, nada tem a ver com o estado da pista, e sim com o desprezo a esses princípios básicos. Por outras palavras, cavalos iniciados com calma, não importa quão precoces eles sejam, e cujos alinhamentos estejam dentro dos padrões de normalidade universalmente aceitos, muito dificilmente terão problemas com seu aparelho ósseo.

Entretanto, não é isso que geralmente ocorre em alguns turfes do mundo, em relação ao treinamento de animais jovens. Seja motivada por razões de custo econômico, seja por mera desinformação dos profissionais do treinamento, seja até por pressão dos proprietários, o fato é que, cada vez mais, o tempo entre o término da doma dos potros e sua estréia nas pistas tende a ser encurtado, em prejuízo óbvio da sanidade do indivíduo. Em alguns turfes, este tempo não ultrapassa algumas poucas semanas.

Ouçamos a respeito, o Dr. Gustavo Gatti, membro do Comité Nacional Argentino de Sanidad e Sustancias Prohibidas en SPC:

No exterior, além do (maior) tempo diário dedicado ao treinamento e aos trabalhos de raia, há uma diferença significativa entre o período em que os potros terminam a doma, até que corram sua primeira carreira. Se questiona (entre nós) se isso se trata de uma falta de critério dos nossos treinadores; da pressão que sofrem por parte dos proprietários para que seus cavalos corram logo; ou de algum outro fator que faz com que potros comecem a correr a 45 dias de sua doma, quando ainda não se encontram maduros para esta atividade.” (os grifos são nossos)

Prossegue o Dr. Gatti:

Como fator adicional, se deve ter em conta a própria programação de corridas, onde se faz necessário uma melhor distribuição das distâncias, agregando carreiras em distâncias maiores em todas as oportunidades que se apresentem.” (Relatório Anual de Atividades da OSAF – 2010, pág. 12)

As várias intervenções a respeito, nos conduzem a conclusões bastante claras: (i) a de que a permissão de uso da fenilbutazona é um mal, seja para o esporte em si, seja para a garantia da integridade física e do bem estar dos animais de corrida; (ii) que, novamente, o risco de lesões ósseas, principalmente nos juvenis, guarda estreita correlação com os métodos errados de treinamento a que eles são submetidos.

Seja de uma forma, seja de outra, não se justifica, em nenhuma hipótese, ver cavalos de corrida atuando com fenil. Ao contrário, isso deveria constar de seus “turf–records” em todos os Stud Books do mundo, para que se soubesse, afinal, de que tipo de indivíduo efetivamente se trata.

E para quem duvida da hipótese, informa–se que a tendência natural da Federação Internacional das Autoridades Hípicas (FIAH) é caminhar nessa direção. Ou seja, a de recomendar aos Stud Books internacionais que passem a registrar o uso de furosemida e/ou fenil nos assentamentos das campanhas de todos os animais que lhes incumbe registrar.

Aliás, no que respeita à furosemida – já que a fenilbutazona sempre foi proibida no país –, o Stud Book Brasileiro já se prepara para fazer isso. Seria um passo na direção certa, sem dúvida.

Enfim, eis aí o sumo das reuniões da OSAF, em março deste ano, por ocasião da realização do GP Latino Americano, em San Isidro.

Agora, resta esperar o próximo GP Latino Americano, já programado para o Hipódromo de Cidade Jardim, São Paulo, em março de 2012, e, antes disso,  a reunião do Comitê de Ratings, em agosto, no Rio de Janeiro, por ocasião da semana do GP Brasil.

Certamente, o mundo do cavalo de corrida está, aos poucos, mudando. E com ele, o mercado internacional da indústria do thoroughbred. Acompanhar de perto essas modificações, é o que, de relevante, podem fazer as associações de classe de criadores e proprietários, as principais sociedades promotoras de corridas do país, e as autoridades que dirigem o turfe do Brasil.



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